6 Janeiro, 2012

A ineficácia do sistema penal

O sistema penal e a respectiva
máquina judiciária, enquanto sistema tradicional de justiça, não são
suficientes para dar resposta às necessidades das vítimas. Há
experiências e avaliações positivas no direito comparado aferindo das
potencialidades da mediação e de outros sistemas alternativos de
resolução de litígios. Até porque mais importante que a guerra é a
procura da paz!

 

E, sem dúvida, que a mediação penal é um dos
instrumentos que melhor permite fazer cessar a guerra e construir a paz,
desde que os interessados tenham igualdade de armas e possam ser, em
todas as fases do processo acompanhados e devidamente aconselhados por
advogados.

 

É sabido que nos primórdios do direito penal
vigoravam sistemas de justiça privada, somente condicionados ou
disciplinados pelas autoridades públicas para que não se ultrapassassem
os estritos limites do razoável, isto é, da adequação e da
proporcionalidade na violência que significava esta vindicta privata
que, diga-se, era então o meio preponderante para garantir a reposição
da validade da norma violada e, em última análise, da ordem social.

 

Com a organização da sociedade em Cidades, Estados e Impérios, e a
tentativa da superação dos conflitos privados, caminhou-se para a
publicização do direito penal. Isto é, evoluiu-se do sistema de justiça
privada para um sistema preponderantemente público em que a justiça era
sobretudo principal função do chefe, do rei ou do imperador, embora
normalmente a sua intervenção fosse só desencadeada por iniciativa dos
interessados, que, como sempre, tinham diversas capacidades de
intervenção e de impulso.

 

Hoje em dia o monopólio ou, pelo
menos, a excessiva intervenção do Estado no que respeita à instauração –
ou simples prossecução – da acção penal que entretanto se estabeleceu,
começa paulatinamente a recuar.

 

Esta tendência comprova-se
desde logo porque é crescente o número de crimes de tipo semi-público;
ou de possibilidades de findar o processo em situações de acordo; tal
como é crescente também o recurso aos meios alternativos, aos princípios
da oportunidade e do consenso no processo penal; e finalmente, porque é
igualmente crescente a intervenção mais próxima e actuante de sujeitos
do processo penal, mormente da vítima que, num número cada vez maior, se
constitui assistente nos autos e começa a ter maiores poderes na lei e
na prática.

 

A matriz processual penal é sempre dependente do
contexto historico-temporal e sócio-espacial e não lhe pode ser
indiferente. Assim como não é também irrelevante o quadro legal e
estatutariamente instituído dos sujeitos e intervenientes processuais e
dos seus formais e reais poderes e regimes. Não é enfim de descurar a
realidade vivida, e as diferentes realidades vividas, em cada país e no
nosso em particular.

 

Centrando a análise no contexto actual
do processo penal português, percebemos que o juiz não deve ser mediador
– pois para isso mesmo estão mais vocacionados outros profissionais e,
em caso de necessidade, os advogados, os magistrados do Ministério
Público ou os mediadores em sentido próprio – mas nada impede que o juiz
possa agir como um conciliador. Não perderá o juiz, certamente,
quaisquer das características que enformam a função, designadamente a
isenção e a imparcialidade. A função normal do magistrado judicial é a
de decidir sobre as controvérsias, os conflitos, os litígios ou os
impasses. Mas sobretudo o que se lhe pede é a solução justa e equitativa
dos casos, a pacificação social e a restauração da paz, se possível com
adesão, compreensão e assentimento de todas as partes envolvidas,
sempre com respeito pela lei.

 

Quanto ao magistrado do
Ministério Público deverá, na maioria dos casos, ser também um
conciliador e poderá, pelo menos em fases iniciais ou em casos limite,
ser um mediador em sentido impróprio. Até porque a mediação, como meio
alternativo de resolução de litígios, pressupõe a intervenção de um
terceiro, neutro ou imparcial, de confiança das partes ou dos sujeitos
processuais (pessoas físicas ou jurídicas), voluntariamente escolhido. O
mediador age como catalisador, que, usando de habilidade e arte, leva
as partes ou os sujeitos processuais a encontrarem, elas próprias, a
solução para as suas pendências.

 

Apesar do juízo de
suspeição, o arguido é sujeito processual e não apenas sujeito ao
processo. Tem direitos e deveres, presume-se inocente e como tal deve
ser tratado em todas as fases e momentos processuais, sem quaisquer
pré-juízos ou preconceitos. Nada impede, então, que se possa procurar
uma solução amigável ou consensual do conflito por razões várias, e até
por pragmatismo ou utilitarismo puro.

 

A vítima já não é apenas
figura de passagem do processo penal, o mero “objecto do crime”, sem
direito de intervenção nos autos e de participação activa no decurso das
várias fases do processo. A vítima é hoje, ou pode e deve sê-lo,
sujeito de pleno direito no processo penal, basta que intervenha no
processo. Para isso, terá que constituir-se como assistente, apesar de
tal não ser suficiente por si só. Pois situações há em que, mais do que a
punição do culpado, o que interessa é salvaguardar o interesse
perturbado pela lesão que o agressor causou, procurando fazer intervir a
justiça restaurativa. No entanto, a eficácia deste procedimento
depende, nomeadamente, da intervenção de uma entidade “fazedora de
consensos”, que promova o acordo, tornando possível que o mesmo passe
pela reparação pecuniária da lesão, ou pela aplicação de uma medida de
sinalização ou de punição do agressor, em que a vítima seja também
convocada para a definição dessa medida.

 

O assistente mais não é que o
titular do interesse ofendido com uma especial posição processual que
lhe permita acção autónoma, mas coadjuvante, do Ministério Público. Pode
requerer o que entender pertinente aos seus interesses, oferecer provas
e recorrer de todas as decisões que lhe sejam desfavoráveis. Pode
igualmente não se conformar com o arquivamento do Ministério Público e
suscitar o incidente de intervenção hierárquica ou requerer a abertura
de instrução para que prossiga o processo. Pode ainda não aceitar a não
pronúncia (não submissão a julgamento finda a parte da instrução) e
recorrer, pode alegar, pode opor-se à suspensão provisória do processo,
pode, enfim ter voz activa no decurso do processo, ainda para o fazer
findare em determinadas condições.

 

O lesado também tem a
possibilidade, como parte civil, de intervir no processo penal. Embora
seja tradicionalmente difícil que a vítima e o agressor se encarem, de
forma pacífica e adequada, poderá e deverá procurar-se a aproximação
entre as partes, de molde a que o lesado supere psicologicamente a lesão
e aceite a medida aplicada, da mesma maneira que o agressor aceite a
injunção e a assunção da necessidade reparadora, descodificando-a como
uma intervenção pedagógica e não como uma forma de punição, de exclusão
ou de mera punição.

 

O advogado defensor do arguido ou patrono
da vítima é o elo de ligação entre o cidadão e o sistema tradicional de
justiça. Mas deve sê-lo também na mediação, porque a mediação não é
inócua. E o advogado é um dos principais crivos dos conflitos. É,
quantas vezes também ele, parte e decisor, mediador, conciliador e
árbitro. Age, porém, enquadrado pela lei e pelo seu estatuto
deontológico, sempre pautando o seu comportamento, pela incessante busca
dos legítimos interesses do seu constituinte ou cliente.

 

O advogado é,
também ele, órgão de administração da Justiça, seja individualmente
considerado seja no âmbito de uma sociedade. Não é hoje pensável o
processo sem a assistência de um profissional do foro, de um jurista.
Mas também não são pensáveis os mecanismos de resolução alternativa de
conflitos sem o advogado. É precisamente essa a definição do patrocínio:
a representação da parte ou do sujeito processual por um profissional
do foro, quer seja ele advogado, advogado estagiário ou solicitador. E é
no interesse da administração da justiça que o patrocínio judiciário se
encontra instituído, no interesse dos sujeitos processuais patrocinados
ou defendidos e das partes representadas.

 

Mas  nem só de
mediação penal se fala quando se aborda o consenso, tanto mais que em
Portugal, vigora o princípio da legalidade que, tomado em sentido
estrito, é hipócrita e falso, pois os critérios de oportunidade já
existem “às ocultas…”, ou seja, que já se procede “…de forma
incontrolada a uma selecção inevitável…” que deveria ser “…feita de
modo transparente e disciplinado…”. É a oportunidade “velada”, o
chamado “filtro” ou meio “para descongestionar” os tribunais, a sua
“válvula de escape”. Assim se refere que, até inconscientemente, tal
selecção “…é feita desde logo pelas vítimas, que percepcionam ou não
certos actos como crimes, conforme convenções sociais ou os seus
próprios preconceitos independente do enquadramento legal”. Que essa
selecção “é feita, depois pela polícia, que não participa todos os
crimes de que tem conhecimento, procedendo a uma triagem de acordo com
certos critérios, uns mais confessáveis e compreensíveis do que outros”.
E, para que não fiquemos por quem não está aparentemente sujeito
directa e expressamente ao princípio da legalidade, diz-se também que
tal selecção “…é feita, por fim, no Ministério Público, mesmo quando
vigore o mais estrito princípio da legalidade”.

 

O art.º 40º do
Código Penal trata dos fins das penas e a partir dele se pode defender
que nem sempre a um crime deva corresponder necessariamente uma sanção.
Já se disse que “…caso não haja necessidade de pena, nem por motivos
de prevenção geral nem de prevenção especial, não é legítimo
aplicá-la…”. Foi aquilo a que se chamou também de possibilidade de
alívio do “…confronto entre a sociedade e o delinquente, não erigindo a
punição em imperativo absoluto… [reduzindo] o conflito às suas
verdadeiras dimensões e… [evitando] a estigmatização exacerbada a que
muitos delinquentes estão necessariamente sujeitos.” Por seu turno o
art.º 280º do Código de Processo Penal permite o arquivamento em caso de
dispensa da pena. Ou seja, em caso de prática de um crime – ainda que
indiciariamente comprovada – prevê-se aqui a possibilidade do
arquivamento do processo em caso de dispensa de pena. E alguém tem
dúvidas de que há prioridades e escolhas na condução da investigação?
Diferente do princípio da oportunidade, unilateral por decisão e
unidireccionado por natureza, é o possível espaço – e o desejado esforço
– de consenso, que exige diálogo entre os sujeitos processuais ou, pelo
menos, a sua adesão às propostas de desjudicialização. Disso é exemplo a
forma de processo especial regulada nos art.ºs 392º e ss. do CPP, ou
seja o processo sumaríssimo. E também o art.º 281º do Código de Processo
Penal, sob a epígrafe de suspensão provisória do processo, estabelece
que, ainda que na presença de uma forte suspeita de um crime, pode
pôr-se fim a um processo sem punição.

 

Estes institutos impõem
a necessidade de uma nova forma de relacionamento entre juízes,
magistrados e advogados. E por isso há quem defenda, e bem, que
“…precisamos todos, magistrados e advogados, de dialogar sobre os
modos de, em conjunto, ultrapassar as dificuldades operativas de um
processo em ordem à realização da Justiça, alterando hábitos adquiridos e
só justificados, quando o são, perante perspectivas diferentes de
alcançar o fim que a todos nos empenha”. Pois que “a realização do
Direito é dinâmica, é uma procura constante. Se nessa procura das
soluções justas para os casos concretos tivermos de negociar, de
conversar sobre os processos, conversemos quanto o necessário em busca
dos consensos, por que a lei o permite e quer ao serviço da Justiça”.
Conversemos, pois, todos, quer nos processos judiciais, quer na justiça
alternativa; mas para isso é preciso que lá estejamos. E é por isso que
defendemos a obrigatoriedade do advogado na mediação penal e nos
restantes mecanismos de resolução alternativa de litígios. Para
assegurar o respeito pelo Direito e pelos Direitos. Para garantir a
dignidade. Para promover a igualdade ou uma solução há muito e quase
sempre esquecida?