Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00001237
Parecer: P000142000
Nº do Documento: PPA20010531001400
Descritores: TRIBUNAL DE CONTAS
MINISTÉRIO PÚBLICO
INFRACÇÃO FINANCEIRA
RESPONSABILIDADE FINANCEIRA
RESPONSABILIDADE FINANCEIRA REINTEGRATÓRIA
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE CIVIL DA ADMINISTRAÇÃO
FINANÇAS PÚBLICAS
DINHEIROS PÚBLICOS
CONTROLO FINANCEIRO
CONTROLO EXTERNO
JULGAMENTO DE CONTAS
PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA
Livro: 00
Numero Oficio: 00
Data Oficio: 18-01-2000
Pedido: 25-01-2000
Data de Distribuição: 23-03-2001
Relator: HENRIQUES GASPAR
Sessões: R1
Data da Votação: 31-05-2001
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: PGR
Entidades do Departamento 1: DESPACHO DE SUA EXCELÊNCIA O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Privacidade: [12]
Indicação 2: ASSESSOR:MARIA JOÃO CARVALHO
Área Temática: DIR CONST * DIR FUND / DIR ADM * ADM PUBL / DIR CIV * DIR OBG * RESP CIV / DIR FIN
Legislação: CONST76 ART22 ART71 ART214 N1 C N3 N4 ART211 ART271; L 98/97 de 1997/08/26 ART1 ART2 N1 ART5 N1 E ART6 ART15 N1 A B C ART50 N1 ART51 N1 N2 ART53 N2 N3 ART54 N1 N2 N3 A B F G N4 ART55 ART57 N1 ART58 N1 N2 N3 N4 ART59 N1 N2 N3 N4 ART60 ART61 ART62 ART63 ART64 N1 N2 ART65 ART66 N5 ART69 ART70 ART89 ART95; DL 48051 de 1967/11/26; L 34/87 de 1987/06/16 ART45; CP82 ART129 ART372 ART385; DL 22257 de 1933/02/25 ART36; CCIV66 ART564 ART798; CPP87 ART7 N1 N2
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões:
1ª. A responsabilidade financeira, qualificada na Lei nº 98/97, de 26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas) como reintegratória e sancionatória, constitui a forma de responsabilidade específica dos «contáveis», isto é, dos agentes sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas directamente definidos na lei;

2ª. A responsabilidade financeira tem como fonte a prática de factos financeiros directamente previstos na lei (alcance, desvio de dinheiros ou valores públicos, pagamentos indevidos ou não arrecadação de receitas);

3ª. A responsabilidade financeira tem pressupostos, finalidades e consequências diversas de outras formas de responsabilidade, e deve ser apurada e efectivada independentemente de outras formas de responsabilidade que possam derivar dos mesmos factos;

4ª. A responsabilidade financeira reintegratória constitui os responsáveis na obrigação de repor os montantes determinados na lei, apurados objectivamente em função dos factos que constituem os pressupostos da responsabilidade;

5ª. A competência material para a efectivação da responsabilidade financeira pertence ao Tribunal de Contas, devendo ser requerida pelo Ministério Público, no exercício de competência directamente prevista na lei, independentemente de eventuais responsabilidades de outra natureza, emergentes dos mesmos factos, que devam ser apuradas nas jurisdições competentes: responsabilidade civil nas relações externas; responsabilidade penal; responsabilidade disciplinar.

Texto Integral:
Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República,

Excelência:


I

O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal de Contas enviou um texto elaborado pelo Ministério Público naquele Tribunal [1], “na perspectiva de um aprofundamento das questões que se ligam com a necessidade de, no domínio de efectivação de responsabilidades financeiras, articular a intervenção do Ministério Público junto dos diferentes tribunais”, aspecto que Sua Excelência o Procurador-Geral da República mostrou disponibilidade para equacionar, e sobre o qual, “pela complexidade jurídica das questões”, solicitou o parecer do Conselho Consultivo.

Cumpre, assim, emiti-lo.

II
1. Na exposição enviada, os magistrados do Ministério Público naquele Tribunal reconhecem que a prática desde sempre seguida de sobreestar a marcha dos processos no Tribunal de Contas quando os mesmos ou idênticos factos estejam em averiguação em sede penal, se afigura “problematicamente compaginável com o papel nuclear que a este Tribunal cabe, nos termos constitucionais de efectivar as responsabilidades financeiras”.

“Essa prática terá radicado menos em razões de ordem dogmática ligadas ao reconhecimento da prevalência do processo penal do que na constatação de que, sendo em regra insuficiente o acervo factual ou probatório carreado para os processos de conta ou de auditoria, para avaliação do elemento subjectivo, aguardar o resultado do processo crime apareceria como prudente para, a final, aproveitando os resultados dele, concluir pelo prosseguimento ou arquivamento. Igualmente terão relevado considerações pragmáticas de desejável tratamento integrado dos mesmos factos, obviando-se a apreciações espartilhadas por instâncias diversas, em momentos diversos em bases processuais distintas, tudo a favorecer juízos contraditórios eventualmente conducentes a pretexto para ulteriores pedidos de revisão por parte dos demandados que, condenados pelo Tribunal de Contas, viessem a ser absolvidos pela jurisdição criminal. A conformidade desta prática com o disposto na alínea c) do nº. 1 do artº 214º da Constituição firmar-se-ia no entendimento de que, na parte em que a responsabilidade financeira coincide com a responsabilidade civil, os tribunais comuns não estão impedidos de conhecer dela, por força da jurisdição residual dos tribunais comuns (artº 211º, 1, da Constituição) e da adesão (artº 71º, CPP).”

“A prática seguida, (...), de este Tribunal [de Contas] ver enfraquecido o seu poder de controlo, de poder conduzir à efectivação de responsabilidades financeiras à margem dos dispositivos específicos aplicáveis no âmbito do Tribunal de Contas (v.g. relevação total ou parcial de responsabilidades, conversão em multa das responsabilidades reintegratórias, apreciação da prescrição, ponderação conforme à jurisprudência e prática do Tribunal de Contas, das condicionantes funcionais e organizativas), e de outros aspectos melhor desenvolvidos no trabalho anexo, tem quase sempre consequências negativas na efectivação atempada da responsabilidade financeira podendo, por via da prescrição e da conhecida morosidade dos processos penais, ficar inviabilizada a intervenção deste Tribunal ulteriormente à havida no processo penal, sendo certo que se, por falta de pressuposto, o processo penal cessar antes do julgamento, este Tribunal deverá retomar a responsabilização financeira.”

“No quadro legal vigente, o Ministério Público junto do Tribunal de Contas, tendo embora a função de requerer junto da 3ª Secção a efectivação da responsabilidade financeira, não intervém na fase das auditorias ou da verificação externa de contas, sendo que é aí que hão-de apurar-se os factos constitutivos dessa responsabilidade, o que significa que o Ministério Público fica à mercê do que, em sede factual e probatória, a 1ª ou a 2ª Secção lhe ofereçam. Como, sobretudo, à mercê fica do que essas instâncias entendam não dever fazer, em estrita obediência a um plano de acção previamente fixado, no que a capacidade de intervir do MP é diminuta, senão nula.”

“Por isso, a concluir-se, contra a prática que vem sendo seguida, que a efectivação da responsabilidade financeira cabe em exclusivo ao Tribunal de Contas e que ela não deve, por princípio, aguardar o que se conclua em sede de processo penal, importará que as 1ª e 2ª Secções deste tribunal avalizem o mesmo entendimento e que ele seja difundido por todos os órgãos de controlo interno com funções de auditoria financeira, por forma a que, pelo menos quando interesses financeiros públicos especialmente relevantes tenham sido postergados, não deixem de realizar-se auditorias ou outros procedimentos aplicáveis em razão da pendência do processo penal ou de invocáveis constrições aos Planos de Acção do Tribunal e que neles se invista o necessário por forma a que o Ministério Público, quando for o caso, possa com êxito prosseguir na 3ª Secção a acção de responsabilidade financeira.”

“A nova prática determinaria ainda, numa destrinça que nem sempre é fácil, que o Ministério Público junto dos tribunais cíveis e criminais apenas devesse curar de efectivar responsabilidades de natureza cível excedentes das de natureza financeira (v.g. danos morais, danos causados por pessoas não sujeitas à jurisdição financeira), deixando para o Tribunal de Contas tudo o que, em razão dos sujeitos e da natureza dos factos e dos danos, fosse de subsumir no conceito de responsabilidade financeira, devendo, logo que adquiridos no processo, transmitir ao Tribunal de Contas os elementos pertinentes apurados em sede penal.”


2. O âmbito da discussão problemática em redor da intervenção do Ministério Público no Tribunal de Contas delimita-se, assim, em vários planos de consideração e abordagem, dentro do enquadramento traçado.

No estudo que serviu de base à reflexão dos magistrados em serviço naquele Tribunal, a questão nuclear, com as suas consequências processuais, reverte, essencialmente, à classificação e qualificação da responsabilidade financeira como noção autónoma, e aos pontos de convergência ou de sobreposição que possa ter com a responsabilidade civil de funcionários ou agentes, e apontam-se algumas hipóteses de trabalho para encontrar uma solução válida e coerente para a definição de critérios de intervenção processual do Ministério Público na efectivação da responsabilidade financeira.

Refere-se, aí, em síntese das questões e das hipóteses de solução, dependendo das “posições doutrinais adoptadas”:

“Se (...) for considerado que a indemnização por responsabilidade civil, resultante da violação de normas penais ou civis, não visa compensar os mesmos danos decorrentes de coincidentes infracções financeiras, haverá que concluir-se que o pagamento de uma primeira indemnização em sede de processo penal ou civil em nada impede a concomitante ou posterior efectivação da responsabilidade financeira no Tribunal de Contas”.

“Se for considerado, no entanto e pelo contrário, que há uma espécie de “concurso ideal” de responsabilidades e uma “indiferenciação” de competências jurisdicionais, em que o pagamento da indemnização, num processo de uma das jurisdições, compensa os danos decorrentes da outra responsabilidade, a efectivar no outro processo e a decorrer na outra jurisdição, parece pouco importar qual das acções deve ser prioritária. Porém, nestes casos, seria então de seguir a regra imposta pelo princípio da adesão em processo penal, quando se verificasse a concomitante responsabilidade criminal pelos mesmos factos”.

É - como se informa - o que tem sucedido até agora.

“Só que, daí, parece resultar, em certa medida, absurdo e aparentemente inútil todo o regime constitucional e legal que enforma o específico processo de efectivação da responsabilidade financeira a cargo do Tribunal de Contas consagrado na lei, na sequência da revisão constitucional de 1989”.

“Uma terceira hipótese (...) surge, por isso, como mais profícua e juridicamente coerente. Ela parte de uma leitura conforme a Constituição, do actual conceito de responsabilidade financeira e da específica razão de ser da jurisdição especial onde ela se deve efectivar, através de processo próprio, mas não da distinta natureza dos danos.
(...)

“Apontar-se-ia, consequentemente, assim, para a ideia de que, sempre que qualquer facto constitutivo de responsabilidade civil de um funcionário público ou titular de cargo público para com o Estado, constituísse, simultânea e coincidentemente, responsabilidade financeira, esta, em obediência à directa competência constitucional atribuída ao Tribunal de Contas para o efeito, só nesta jurisdição poderá ser efectivada”.

III

1. A actividade financeira constitui o núcleo central das finanças públicas, que consistem na afectação pelo poder (político ou administrativo) de bens ou serviços adequados para a satisfação de necessidades colectivas da sociedade e do Estado [2].

Os bens materiais que prestam utilidades públicas ou que financiam os serviços públicos (bens públicos) podem ser encarados como património[3], ou como “fluxo”, constituído por entradas ou saídas de fundos, obtenção ou afectação de recursos, nomeadamente quando sejam encarados como meios de liquidez - fundos ou dinheiros públicos.

“Em economias monetárias - como são e tendem a ser cada vez mais as economias modernas - pode dizer-se que os dinheiros públicos, em seus fluxos anuais, são a noção central das finanças públicas, que podem definir-se simplificadamente como ‘as regras e operações relativas aos dinheiros públicos’; a eles tendem a assimilar–se os activos patrimoniais”.

Dinheiros públicos são, na síntese de SOUSA FRANCO[4], “a) fundos (isto é, dinheiro em espécie, moeda escritural e outras formas de liquidez imediata) ou valores (ou seja, títulos e créditos realizáveis a curto prazo); b) possuídos ou detidos por uma autoridade pública (Estado, institutos públicos, regiões, autarquias, empresas públicas e outros organismos ou entidades públicas formalmente especificados); c) que pertençam em propriedade aos organismos públicos, adquirindo o carácter público quando são adquiridos em execução de um crédito e perdendo-a quando são alienados em cumprimento de uma dívida (ou por outro título legítimo).”

No âmbito do direito financeiro e da contabilidade pública, os dinheiros públicos são confiados a certos agentes político-–administrativos, que respondem pela integridade e pela validade e regularidade das operações sobre eles praticadas. Esta responsabilidade traduz-se, designadamente, na obrigação de prestar contas.

Os dinheiros públicos são, pois, confiados a certos agentes político-administrativos que os administram segundo determinadas regras específicas, que constituem o direito financeiro, e que “dão forma e garantia” a princípios que justificam a sua autonomia. Entre estes, o “princípio da confiança, como fundamento e regra básica de quaisquer poderes exercidos sobre bens ou dinheiros públicos, com algumas consequências claras: limitação funcional dos poderes de gestão financeira; sua partilha necessária entre diversos gestores ou órgãos de decisão, sujeição à legalidade genérica e à legalidade específica (orçamento), publicidade, transparência, clareza, responsabilização («accountability»)[5].

A garantia do princípio da confiança, como fundamento e regra básica de quaisquer poderes exercidos sobre dinheiros públicos, efectiva-se, quer através da definição de regras específicas sobre os actos e operações financeiras (gestão de dinheiros públicos), como pela obrigação de prestar contas, através da qual se procede ao respectivo controlo[6].

“A actividade financeira pública - isto é, a actividade que o Estado e outras instituições públicas desenvolvem para satisfazer necessidades económicas mediante a afectação de recursos escassos ou bens económicos, quer obtendo esses recursos (receitas), quer afectando-os (despesas) ou gerindo-os permanentemente (património) - é susceptível de uma análise que contraponha a actividade ao controlo; integram esta função os procedimentos que se destinam a garantir que aqueles que são responsáveis pela actividade financeira respeitem os objectivos e critérios a que deve obedecer, procurando garantir que esta corresponda ao interesse público respeitando as regras e os critérios a que está sujeita por lei e os objectivos que lhe estão politicamente fixados.

2. As funções de controlo de uma organização podem revestir uma multiplicidade de formas, e no âmbito de cada uma, vários procedimentos. Uma das formas ou modalidades é o controlo externo, que é exercido de fora da organização, sobre ela e sobre a sua actividade, com independência total relativamente à organização controlada, que constitui uma modalidade de controlo formal, traduzido numa actividade juridicamente regulada e organizada[7].

O controlo financeiro, enquanto espécie de controlo material ou de actividade, confronta a actividade controlada com um certo número de critérios e objectivos, nomeadamente a regularidade e a legalidade.

A regularidade significa que a actividade financeira deve obedecer a “um conjunto de regras que a tornem racional, sã, regular e contabilisticamente correcta ou aceitável”, “quer se trate de regras mínimas de correcção formal (como o simples equilíbrio formal: não pode haver despesas sem haver receitas), até regras de contabilidade (o controlo financeiro tem sempre referência a regras de contabilidade, (...), a registo e cálculo racional das grandezas da actividade financeira), ou de mera sanidade financeira (correcção das previsões de cobranças ou pagamentos).” A regularidade significa o respeito por valores essenciais como a “integridade dos valores públicos e a fidelidade dos gestores, com as correspondentes relações de confiança e responsabilidade” e por “critérios básicos de qualquer prestação de contas: rigor, clareza, verdade”.

A legalidade significa a imposição de que a actividade financeira, os actos financeiros e os poderes correspondentes obedeçam à lei (submissão à lei e atribuição por lei). “No plano financeiro a legalidade cobre a lei em geral (legalidade genérica e a legalidade específica), consistente em autorizações especiais que condicionam toda a gestão orçamental, nomeadamente a autorização anual para a cobrança de receitas e a criação de despesas (orçamento)”. Trata-se de um valor autónomo face à regularidade, mas, conforme o tipo de avaliação que se faça, podem ser aplicados em conjunto ou separadamente, ou subordinar-se a regularidade à legalidade (óptica jurídica) ou a segunda à primeira (a lei como mera fonte de regularidade contabilística)[8].

Conatural e correspondente necessário das funções de controlo, e para garantir o respeito dos critérios respectivos, a responsabilidade («accountability») constitui um princípio essencial. A gestão de dinheiros alheios pressupõe a responsabilidade perante o respectivo titular, não podendo haver funções financeiras (sejam políticas ou meramente administrativas) sem formas adequadas de responsabilização.


3. O controlo externo independente pode ser assegurado - e tem-no sido historicamente - através de grandes modelos de organização, designadamente o modelo jurisdicional[9].

Neste sentido, a jurisdição de contas será constituída pelas funções dos tribunais de contas, que se traduzem numa actividade específica e materialmente jurisdicional: a aplicação da lei a casos concretos, no julgamento das contas, com a definição e efectivação, se for o caso, das responsabilidades a que houver lugar.

A função jurisdicional dos tribunais de contas (a jurisdição financeira em sentido próprio) consiste naturalmente no julgamento das contas. “Esta é uma actividade constituída pela determinação da correcção e legalidade das contas apresentadas no final do exercício ou da gerência financeira (em princípio anual), por todos os responsáveis por dinheiros públicos (os que cobram receitas ou pagam despesas; os que autorizam o respectivo pagamento), verificando a respectiva legalidade: todos eles designados por contáveis em termos amplos. Trata-se, pois, de um processo de prestação de contas que é legalmente obrigatório para todos os gerentes ou administradores que respondem, no plano administrativo, por valores públicos, quer os patrimoniais em geral, quer os especialmente constituídos por dinheiros públicos, devendo justificar a fidelidade da sua gestão, a correcção contabilística e a legalidade dos actos praticados no fim dessa gestão”. “A prestação de contas obrigatória dos contáveis, exactores ou pagadores púbicos resulta do velho princípio (...) segundo o qual todo o administrador de bens alheios deve prestar contas dessa administração”[10].

O processo típico de controlo jurisdicional orienta-se, assim, para o julgamento das contas.

O julgamento da conta pode, porém, traduzir-se apenas em declarar a correcção da conta apresentada, ou pode consistir também, de modo independente ou cumulativo, em declarar a “fidelidade, correcção e legalidade da gestão financeira dos responsáveis”. No primeiro caso - refere SOUSA FRANCO[11] - “na técnica financeira portuguesa, declara-se correcto o ajustamento da conta, isto é, os valores globais da gestão financeira do ano e o seu resultado final que transita para o ano seguinte. No segundo caso dá-se quitação aos responsáveis, declarando-os livres de qualquer responsabilidade para com a Fazenda Nacional ou, se não houver condições para dar quitação por haver ilegalidades ou irregularidades relevantes ou falta de valores geradores de dívida, condenar-se-ão os responsáveis a repor os valores que faltam ou a pagar multas ou a sofrer outras penas ou efeitos jurídicos sancionatórios por ilicitudes ocorridas no período financeiro relativamente ao qual se apresentam contas”.

Esta forma de actuação jurídica - julgamento da conta em sentido amplo para incluir o julgamento da conta e o julgamento dos responsáveis com respectiva quitação ou condenação - constitui o objecto principal da jurisdição financeira.

IV


1. Dispõe o artigo 214º da Constituição:

“1. O Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das despesas públicas e de julgamento das contas que a lei mandar submeter-lhe, competindo-lhe, nomeadamente:
a) (...);
b) (...);
c) Efectivar a responsabilidade por infracções financeiras, nos termos da lei;
d) (...).”

2 (...).

3. O Tribunal de Contas pode funcionar descentralizadamente, por secções regionais, nos termos da lei.

4. Nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira há secções do Tribunal de Contas com competência plena em razão da matéria na respectiva região, nos termos da lei.”

A Lei nº 98/97, de 26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas) ([12]), por seu lado, concretizando em organização, competências e processo o órgão jurisdicional previsto na Constituição, dispõe no artigo 1º , ao definir a jurisdição deste Tribunal, que “o Tribunal de Contas fiscaliza a legalidade e a regularidade das despesas públicas, aprecia a boa gestão financeira e efectiva responsabilidades por infracções financeiras”.

O objectivo e o âmbito da competência consta do artigo 2º. Dispõe o nº 1:

“Estão sujeitas à jurisdição e aos poderes de controlo financeiro do Tribunal de Contas as seguintes entidades:
a) O Estado e seus serviços;
b) As regiões Autónomas e seus serviços;
c) As autarquias locais, suas associações ou federações e seus serviços, bem como as áreas metropolitanas;
d) Os institutos públicos;
e) As instituições de segurança social.
2 (...).
3 (...).
4 (...).”

Os artigos 5º e 6º estabelecem a competência material do Tribunal (competência material essencial – artigo 5º, e competência material complementar – artigo 6º).

Entre as várias competências que a lei fixa para o Tribunal de Contas no âmbito da competência material essencial, prevê a alínea e) do nº 1 do artigo 5º a de “julgar a efectivação das responsabilidades financeiras das entidades referidas no nº 1 do artigo 2º, mediante processo de julgamento de contas ou na sequência de auditorias, bem como a fixação de débitos aos responsáveis ou a impossibilidade de verificação ou julgamento de contas, podendo condenar os responsáveis financeiros na reposição de verbas e aplicar multas e demais sanções previstas na lei.”

O Tribunal de Contas funciona, na sede, em secções especializadas – artigo 15º, nº 1: a 1ª Secção, encarregada da fiscalização prévia, podendo, em certos casos, exercer fiscalização concomitante – alínea a)[13]; a 2ª Secção, encarregada da fiscalização concomitante e sucessiva de verificação, controlo e auditoria – alínea b); e a 3ª Secção, encarregada do julgamento dos processos de efectivação de responsabilidades e multa – alínea c).

2. No âmbito da fiscalização sucessiva, o Tribunal de Contas verifica as contas das entidades sujeitas à sua jurisdição e poder de controlo financeiro[14], avalia os respectivos sistemas de controlo interno, aprecia a legalidade, economia, eficiência e eficácia da sua gestão financeira e assegura a fiscalização da comparticipação nacional nos recursos próprios comunitários e da aplicação dos recursos financeiros oriundos da União Europeia - artigo 50º, nº 1, da Lei nº 98/97 [15].

As entidades que estão sujeitas à prestação de contas vêm enumeradas no artigo 51º, que dispõe sob a epígrafe “Das entidades que prestam contas”:
“1. Estão sujeitas à elaboração e prestação de contas as seguintes entidades:
a) A Presidência da República;
b) A Assembleia da República;
c) Os tribunais;
d) As assembleias legislativas regionais;
e) Outros órgãos constitucionais;
f) Os serviços do Estado e das Regiões Autónomas, incluindo os localizados no estrangeiro, personalizados ou não, qualquer que seja a sua natureza jurídica, dotados de autonomia administrativa e financeira, incluindo os fundos autónomos e organismos em regime de instalação;
g) O Estado-Maior General das Forças Armadas e respectivos ramos, bem como as unidades militares;
h) A Santa Casa da Misericórdia e o seu Departamento de Jogos;
i) O Instituto de Gestão do Crédito Público;
j) A Caixa Geral de Aposentações;
l) As juntas e regiões de turismo,
m) As autarquias locais, suas associações e federações e seus serviços autónomos, áreas metropolitanas e assembleias distritais;
n) Os conselhos administrativos ou comissões administrativas ou de gestão, juntas de carácter permanente ou eventual, outros administradores ou responsáveis por dinheiros ou outros activos do Estado ou de estabelecimentos que ao Estado pertençam, embora disponham de receitas próprias;
o) As entidades previstas no nº 2 do artigo 2º [16];
p) Outras entidades ou organismos a definir por lei.

2. Estão ainda sujeitos à elaboração e prestação de contas:
a) Os serviços que exerçam funções de caixa da Direcção-–Geral do Tesouro, da Direcção-Geral das Alfândegas e da Direcção-Geral dos Impostos;
b) Os estabelecimentos com funções de tesouraria;
c) Os cofres de qualquer natureza de todos os organismos e serviços públicos, seja qual for a origem e o destino das suas receitas.
3. (...).
4. (...).
5. (...).”

3. Prestadas as contas pelas entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas, este verifica-as através de procedimentos de verificação interna ou externa.

A verificação interna está prevista no artigo 53º: “A verificação interna abrange a análise e conferência da conta apenas para demonstração numérica das operações realizadas que integram o débito e o crédito da gerência com evidência dos saldos de abertura e encerramento e, se for caso disso, a declaração de extinção de responsabilidade dos tesoureiros caucionados” – nº 2; a verificação interna é efectuada pelos serviços de apoio, e deve ser homologada pela 2ª Secção – nº 3.

Por seu lado, a actividade, os critérios e os procedimentos de verificação externa das contas estão regulados no artigo 54º, “Da verificação externa das contas”, que dispõe:

“1. A verificação externa das contas tem por objecto apreciar, designadamente:
a) Se as operações efectuadas são legais e regulares;
b) Se os respectivos sistemas de controlo interno são fiáveis;
c) Se as contas e as demonstrações financeiras elaboradas pelas entidades que as prestam reflectem fidedignamente as suas receitas e despesas, bem como a sua situação financeira e patrimonial;
d) Se são elaboradas de acordo com as regras contabilísticas fixadas.

2. A verificação externa das contas será feita com recurso aos métodos e técnicas de auditoria decididos, em cada caso, pelo Tribunal.

3. O processo de verificação externa de contas conclui pela elaboração e aprovação de um relatório, do qual deverão, designadamente, constar:
a) A entidade cuja conta é objecto de verificação e período financeiro a que diz respeito;
b) Os responsáveis pela sua apresentação, bem como pela gestão financeira, se não forem os mesmos;
c) (...);
d) (...);
e) (...);
f) O juízo sobre a legalidade e regularidade das operações examinadas e sobre a consistência, integralidade e fiabilidade das contas e respectivas demonstrações financeiras, bem como sobre a impossibilidade da sua verificação, se for caso disso;
g) A concretização das situações de facto e de direito integradoras de eventuais infracções financeiras e seus responsáveis, se for caso disso;
h) (...);
i) (...);
j) (...).

4. O Ministério Público será apenas notificado do relatório final aprovado, sem prejuízo do disposto nos artigos 29º, nº 4 e 57º, nº 1.”

Nos termos do artigo 55º, o Tribunal pode, para além das auditorias necessárias à verificação externa das contas, realizar também, a todo o momento, auditorias de qualquer tipo ou natureza a determinados actos, procedimentos ou aspectos da gestão financeira de uma ou mais entidades sujeitas aos seus poderes de controlo financeiro. Os processos de auditoria concluem pela elaboração e aprovação de um relatório do qual devem constar, entre outros elementos, o juízo sobre a legalidade e a regularidade dos actos examinados e a concretização das situações de facto e de direito integradoras de eventuais infracções financeiras e seus responsáveis.


4. Os relatórios de verificação externa das contas ou de auditoria constituem a base factual que se apresenta, quando for o caso, como necessário pressuposto para o exercício da actividade jurisdicional de efectivação das responsabilidades financeiras.

Assim é que o artigo 57º, nº 1, da Lei nº 98/97 determina que sempre que os relatórios de verificação externa de contas ou de auditoria relativos às entidades referidas no artigo 2º, nº 1[17], “evidenciem factos constitutivos de responsabilidade financeira, deverão os respectivos processos ser remetidos ao Ministério Público” a fim de serem desencadeados eventuais procedimentos jurisdicionais.

As responsabilidades financeiras efectivam-se através dos processos previstos no artigo 58º, nº 1: de julgamento de contas; de julgamento de responsabilidades financeiras; de fixação de débito aos responsáveis ou de declaração de impossibilidade de julgamento e de multa.

O processo de julgamento de contas visa tornar efectivas as responsabilidades financeiras evidenciadas em relatórios de verificação externa de contas – nº 2.

O processo de julgamento da responsabilidade financeira visa tornar efectivas as responsabilidades financeiras emergentes de factos evidenciados em relatórios de auditoria elaborados fora do processo de verificação externa de contas – nº 3.

O processo de fixação de débito aos responsáveis ou da declaração da impossibilidade da verificação ou julgamento da conta visam tornar efectivas as responsabilidades financeiras por falta da prestação de contas ao Tribunal ou, quando prestadas, declarar a impossibilidade de formular um juízo sobre a consistência, fiabilidade e integralidade das mesmas e a eventual existência de factos constitutivos de responsabilidade financeira, com a competente efectivação, em qualquer caso – nº 4.

Os processos autónomos de multa têm lugar nas situações previstas nos artigos 65º e 66º ou outras de aplicação de multa previstas na lei e para as quais não haja processo próprio - nº 5.

O julgamento dos processos para efectivação de responsabilidades financeiras previstos no artigo 58º, que deve ser requerido pelo Ministério Público, independentemente das qualificações jurídicas dos factos constantes dos respectivos relatórios, processa-se nos termos previstos nos artigos 89º a 95º da Lei nº 98/97: requerimento, citação, contestação, audiência de discussão e julgamento segundo o regime do processo sumário do Código de Processo Civil, e sentença, que admite recurso.

V

1. O artigo 59º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto, define os pressupostos da responsabilidade que a própria lei designa de “responsabilidade financeira reintegratória”.

A complexidade nominativa da noção sugere algumas referências aos elementos que integram este tipo de responsabilidade, na finalidade de identificar e integrar a dimensão material do conceito, tornando-o utilizável na perspectiva em que a questão vem colocada.

A categoria identificada na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas apresenta como seu elemento integrante um primeiro conteúdo que, usado numa dimensão jurídica e normativa, colhe o sentido que aí lhe é inerente.

Responsabilidade, na valoração jurídica, traduz a complexa situação em que se coloca um sujeito que, tendo praticado um acto a que sejam atribuídos por lei determinados efeitos consequenciais, vê formar-se na sua esfera jurídica a obrigação de suportar certas sanções ou efeitos desfavoráveis. Na base da noção está, assim, sobretudo, a violação de uma regra de conduta à qual são atribuídos determinados efeitos, derivados da qualidade ou da posição jurídica assumida pelo sujeito que, conjugando-se com a natureza antijurídica dos factos praticados, ou da natureza da norma jurídica afectada, vai condicionar a aplicação da responsabilidade que ao caso couber[18].

A posição jurídica assumida pelo sujeito em relação aos actos ou comportamentos que estejam em causa conforma a espécie ou a natureza da responsabilidade em que possa incorrer.

Na dimensão jurídica, as formas de responsabilidade salientes, e dir-se-ia típicas, são a responsabilidade civil e a responsabilidade penal; perante determinadas condições e posições relacionais específicas do sujeito, a responsabilidade pode assumir uma qualificação de natureza disciplinar [19]. A responsabilidade civil define a situação jurídica do sujeito que ofenda os deveres resultantes de uma vinculação contratual, causando danos ao outro contraente (contratual), ou da violação de disposições legais destinadas a proteger direitos ou interesses de outrem (extracontratual) ou ainda da utilização de vantagens inerentes à produção de certos riscos tipificados que provoquem danos (objectiva); a responsabilidade penal pressupõe a prática de factos descritos como infracção penal e nas formas previstas na lei; a responsabilidade disciplinar, a prática de actos lesivos de uma especial relação de confiança e de deveres de conteúdo funcional ou profissional no interior e dentro dos limites de uma relação (pública ou privada) de trabalho.


2. A noção referida no artigo 59º da Lei nº 98/97 qualifica a indicada forma de responsabilidade como financeira.

A dimensão objectiva e subjectiva que envolve o ambiente no qual a categoria assume relevo e sentido jurídico está na esfera pública e no âmbito de actuação de funcionários e agentes do Estado. Foi neste âmbito e nos deveres que vinculam a actuação dos funcionários e agentes públicos que se formou historicamente e se desenvolveu e consolidou o conceito de responsabilidade financeira.

Os funcionários e agentes da Administração são responsáveis pelos actos e omissões praticados no exercício das suas funções. O artigo 22º da Constituição determina que “o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”. A disposição constitucional, inscrita sistemática e materialmente no domínio dos direitos fundamentais, tem ínsita a perspectiva de danos causados a terceiros por factos dos funcionários ou agentes da Administração no exercício das suas funções ou por causa desse exercício.

Correspondentemente, o artigo 271º da Constituição estabelece a matriz constitucional dos termos da responsabilidade dos funcionários e agentes: os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica.

A responsabilidade por factos funcionais, que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos de terceiros (responsabilidade que, numa perspectiva de projecção, se pode designar como externa) pode, pois, ser civil ou criminal.

A responsabilidade civil dos funcionários ou agentes por factos praticados no exercício das respectivas funções ou por causa delas, relativamente a terceiros, solidariamente com a Administração, está ainda hoje prevista no Decreto-Lei nº 48051, de 26 de Novembro de 1967, que define os termos em que os funcionários e agentes respondem perante os lesados[20].

Os funcionários e agentes podem também responder criminalmente por factos funcionais, quando os actos ou omissões que pratiquem em tal qualidade constituam um facto previsto como infracção penal. No domínio das actividades funcionais públicas há valores que assumem uma relevância essencial que justifica que sejam tutelados no plano de protecção do direito penal, constituindo crime os comportamentos que afectem tais valores, enquanto na ordenação fundamental sejam (e por serem) considerados valores relevantes da sociedade e tutelem interesses sem cuja observância a vida em sociedade não seria possível.

Estão nesta qualificação quer os chamados ‘crimes de responsabilidade’, previstos na Lei nº 34/87, de 16 de Junho, em que podem incorrer os titulares de cargos políticos que atentem contra a probidade da Administração, quer os crimes próprios de funcionários, definidos especificamente no Código Penal enquanto crimes cometidos no exercício de funções públicas – artigos 372º a 385º do Código Penal.


3. Numa outra perspectiva, a responsabilidade dos funcionários ou agentes pode situar-se não já na projecção externa em relação a terceiros que entrem em relação com a Administração, ou por referência a valores essenciais da sociedade, mas no interior da própria relação entre o funcionário e a Administração, ou seja, no plano das relações internas. Nesta perspectiva, a responsabilidade aí emergente poderá qualificar-se como «responsabilidade interna»[21].

Nesta dimensão, no interior da própria relação funcional, no plano das relações internas Estado-funcionário, a consolidação de uma responsabilidade interna resulta da consagração do direito de regresso do Estado contra os funcionários no caso de lesão de direitos de terceiros; uma vez reparado o dano a terceiros lesados, o Estado nos termos e segundo o modelo que adopte, poderá, no plano interno, exigir do funcionário quanto teve de reparar ao terceiro lesado.

Do mesmo modo, outros modelos de responsabilidade foram construídos e operam no plano interno e, enquanto tal, constituem igualmente formas de responsabilidade interna.

Desde logo, a responsabilidade disciplinar, que tem fundamento essencial no próprio desempenho dos serviços públicos, prevenindo e sancionando as faltas que comprometam o bom funcionamento dos serviços quando os funcionários deixem de observar os seus deveres funcionais, sejam comuns ou especiais. Da violação de tais deveres de conduta funcional derivam infracções disciplinares, previstas de acordo com a natureza e gravidade da ofensa praticada.

Mas também a designada responsabilidade financeira, comummente associada à obrigação, prevista na lei em certos casos, de reintegrar os dinheiros públicos em consequência de prática financeira ilegal ou irregular por parte das entidades (pessoas singulares - funcionários ou agentes) responsáveis[22].


4. A administração de dinheiros públicos, com efeito, pressupõe e exige - é um importante dado da evolução histórica sobre a responsabilidade na administração pública - a definição de um modelo próprio de responsabilidades, adequado ao rigor e eficácia do respectivo controlo[23].

Na expressão de SCHÄFER[24], esse controlo “é constituído pela totalidade dos dispositivos e medidas de carácter técnico e político que se ocupam de fiscalizar a gestão financeira do sector público”. A responsabilidade financeira tem aí o seu fundamento, a causalidade explicativa, muito reconduzida à “juridificação requerida pelo fenómeno financeiro público, ancorada na tradição demo-liberal do constitucionalismo”, que sucessivamente fez organizar em torno das actividades financeiras das entidades públicas um conjunto de normas que progressivamente foram criando um regime jurídico subordinado a princípios próprios diferentes dos do direito privado, por um lado, e dos outros ramos de direito público, por outro[25].

A ideia genérica de responsabilização corresponde, desde sempre, mas mais acentuada nas estruturas administrativas actuais, a um imperativo permanente e final na organização e funcionamento da máquina financeira: as normas reportadas a este mesmo plano, embora insertas no direito administrativo ou no direito constitucional, são intensamente marcadas pela especificidade financeira do seu objecto.

“O facto social das finanças públicas - cujo problema se pode sintetizar em duas questões essenciais: fixar as despesas públicas e estabelecer as receitas para dar-lhes cobertura - determinou a configuração de esquemas jurídicos que, inspirados nos regimes normativos de outros ramos do direito, ou embora neles incluídos, adquiriram feição própria. A teleologia do direito financeiro e das suas instituições leva a compreender que aos «comptables publics» tenha sido imposta um responsabilidade jurídica específica, mais inflexível que a do direito civil - no fundo, «parce que la caisse du trésor public, qui est celle de tous les citoyens, doit être encore plus inviolable que celle des particuliers»”[26]. A esta luz se justifica e pode ter sentido que, mesmo na ausência de dano patrimonial do Estado, possa ainda subsistir responsabilidade financeira pelo simples facto de uma irregularidade procedimental na gestão ou utilização de dinheiros públicos.

A especialidade (ou a autonomia) da noção também é historicamente derivada de razões instrumentais ou de ordem formal, que, todavia, não se impõem nem têm validade por si, mas entroncam nas razões substanciais ou de fundo: razões ligadas à jurisdicionalização do julgamento das contas, no sentido em que só haverá responsabilidade financeira (hoc sensu) onde existir julgamento de contas e este julgamento não abrange senão quem está legalmente obrigado a prestá-las [27].

Em síntese - neste momento da metodologia de abordagem - pode concluir-se que a categoria autónoma de responsabilidade financeira pressupõe a prática de uma infracção típica às normas jurídicas que disciplinam a actividade financeira do Estado por parte de determinados sujeitos ou entidades ligadas à gestão de dinheiros públicos. A responsabilidade financeira constitui uma categoria normativa própria e autónoma entre os vários conceitos de responsabilidade que podem relevar da fiscalização da actividade financeira pública.


5. A responsabilidade financeira resulta - e é este elemento que a caracteriza e lhe confere autonomia enquanto noção - da inobservância de certos deveres positivos por parte de determinados funcionários ou agentes (os «contáveis»), sujeitos à fiscalização e julgamento de instâncias jurisdicionais próprias, de dar boa guarda e fiel aplicação aos dinheiros públicos.

Tais normas assumem, pois, uma especificidade própria, quer pela natureza que revestem, quer pela qualidade dos agentes que vinculam.

A boa guarda e aplicação dos dinheiros públicos está subordinada a regras estritas, privativas dos agentes que têm a seu cargo a guarda e fiel aplicação dos dinheiros públicos e cuja violação, ferindo a integridade do património financeiro do Estado e a regularidade da respectiva gestão financeira, gera uma particular responsabilidade, típica, que não vai limitada à prática de actos ou omissões que configurem meras faltas pessoais. No caso de tais funcionários ou agentes («contáveis»), a natureza das funções e as normas próprias, específicas e típicas que devem observar no exercício dessas funções, comanda a tipicidade das consequências da inobservância de tais normas e da responsabilidade que lhes está especialmente associada.

As normas de cuja violação decorre a responsabilidade financeira assentam, assim, em fundamentos próprios, diversos pela natureza e tipicidade das outras formas de responsabilidade, tanto externa como interna, a que os «contáveis» podem ficar sujeitos ([28]).

Diversos os pressupostos, diversa a natureza, diversa a responsabilidade.

As normas que prevêm as várias espécies de responsabilidade assentam em pressupostos próprios de cada uma, protegem interesses diferentes, podendo, por isso, ter consequências diversas. O princípio geral é que se não excluem umas às outras, podendo cumular-se desde que uma determinada prática integre em simultâneo os pressupostos de duas ou mais formas de responsabilidade - penal, civil, disciplinar, ou, no caso específico dos «contáveis», financeira [29] [30].

O recorte da autonomia conceptual da responsabilidade financeira (pela natureza, pelos pressupostos e fontes, pelo agentes e pelas consequências que determina) não deve, porém, apagar a proximidade ou a contiguidade com outras formas de responsabilidade, nomeadamente a responsabilidade civil, que constitui a necessária matriz no que respeita aos pressupostos e às consequências no plano reparatório, nem da responsabilidade disciplinar, quando se considerem os pressupostos ainda integráveis nos deveres funcionais e as consequências possam revestir natureza sancionatória típica - as multas.

No entanto, como se referiu, tal contiguidade não é de molde a contrariar a autonomia do conceito de responsabilidade financeira.

A perspectiva sobre a contiguidade entre responsabilidade civil e responsabilidade financeira é desenvolvida por JOÃO FRANCO DO CARMO[31]. Escreve: "Tal como na responsabilidade civil, o vinculum iuris que brota da responsabilidade financeira reveste carácter patrimonial, ou pecuniário, desempenhando a função precípua de impor ao prevaricador a reparação dos danos causados a outrem (neste caso, ao Estado), resultantes da sua actuação desconforme ao direito ou violadora de um dever jurídico (ilícita). Essa desconformidade há-de traduzir-se, todavia, numa infracção financeira, praticada por um sujeito ou entidade a quem está especialmente cometida a guarda e o manejo de fundos públicos. E o dano que dessa infracção emerge será, normalmente, apurado no decurso de um processo de julgamento de contas, de forma muito mais linear que na responsabilidade civil em geral; com efeito, na responsabilidade financeira, é a própria lei que determina a configuração do dano e o modo de apurar o seu montante, sem haver necessidade de proceder ao cálculo do efectivo prejuízo indemnizável. Mas não é sequer necessária, nalguns casos, a existência de dano patrimonial como resultado da infracção, desempenhando então a responsabilidade financeira uma função marcadamente sancionatória e preventiva (...).”

Não obstante a contiguidade das duas figuras, alguns factores “recortam e diferenciam a «responsabilidade jurídica de natureza especial que reveste carácter patrimonial» em que consiste a responsabilidade financeira. (...)”.

“O regime da responsabilidade financeira deve ser integrado e compreendido no quadro geral das formas de responsabilidade jurídica aplicáveis aos funcionários e agentes públicos. Em particular, dada a sua proximidade com o instituto da responsabilidade civil, afigura-se totalmente cabido e oportuno que o intérprete, por via de regra, recorra a este último em busca do arrimo necessário”.

“Seguindo este caminho, são os princípios informadores da responsabilidade contratual, ou obrigacional, que deverão auxiliar preferentemente o intérprete. Com efeito, a responsabilidade designada como ‘interna’ do funcionário tem sempre natureza obrigacional, porquanto pressupõe a violação de deveres de ofício inerentes à relação de serviço público; ora, a responsabilidade financeira implica uma específica obrigação preexistente que a lei faz recair sobre os «comptables publics»: a de guardar e administrar regularmente, isto é, nos termos legalmente aplicáveis, os dinheiros do Estado”.


6. A construção teórica que tem sido elaborada sobre o conceito de responsabilidade financeira tem tradução e comanda o regime vigente deste instituto.

A primeira nota a reter é a da inconfundibilidade da responsabilidade financeira com qualquer outra espécie ou forma de responsabilidade. É o que a lei directa e expressamente dispõe quando refere que o efeito assinalado, “condenar o responsável a repor as importâncias abrangidas pela infracção”, é independente de qualquer outra consequência: “sem prejuízo de qualquer outro tipo de responsabilidade” em que o responsável possa incorrer - artigo 59º, nº 1, da Lei nº 98/97.

A lei define-lhe, pois, os pressupostos, estabelece tipicamente os responsáveis, determina as interrelações na respectiva obrigação e fixa também modelos de avaliação da culpa.

A fonte da responsabilidade financeira está na prática de uma infracção qualificada como infracção financeira, expressamente indicada na lei: nos casos de alcance, desvio de dinheiros ou valores públicos e pagamentos indevidos; o comportamento há-de, assim, corresponder a um ilícito financeiro substancial ou processual[32]. Também constitui fonte de responsabilidade financeira, nos termos do artigo 60º, a não arrecadação de receitas: “nos casos de prática, autorização ou sancionamento doloso que implique a não liquidação, cobrança ou entrega de receitas com violação das normas legais aplicáveis, pode o Tribunal de Contas condenar o responsável na reposição das importâncias não arrecadadas em prejuízo do Estado ou de entidades públicas.”

A responsabilidade financeira, por outro lado, dependendo da prática de actos ou omissões objectivamente qualificados como infracções financeiras, apesar de objectiva, admite a relevância da culpa no comportamento dos responsáveis, de acordo com critérios que a lei estabelece. O artigo 64º, com efeito, dispõe que “o Tribunal de Contas avalia o grau de culpa de harmonia com as circunstâncias do caso, tendo em consideração as competências do cargo ou a índole das principais funções de cada responsável, o volume dos valores e fundos movimentados, o montante material da lesão dos dinheiros ou valores públicos e os meios humanos e materiais existentes no serviço, organismo ou entidades sujeitas à sua jurisdição” - nº 1. Nos casos de negligência, “o tribunal pode reduzir ou relevar a responsabilidade em que houver incorrido o infractor, devendo fazer constar da decisão as razões justificativas da redução ou da relevação” - nº 2.

Os responsáveis estão enumerados no artigo 61º. A responsabilidade pela reposição recai sobre o agente ou agentes da acção, sobre os membros do Governo nos termos e condições fixados no artigo 36º do Decreto-Lei nº 22257, de 25 de Fevereiro de1933, nos gerentes, dirigentes ou membros dos órgão de gestão administrativa e financeira ou equiparados e exactores dos serviços, organismos e outras entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas. A responsabilidade pode ainda recair nos funcionários e agentes que, nas suas informações para os membros do Governo ou para os gerentes, dirigentes e outros administradores, não esclareçam os assuntos da sua competência de harmonia com a lei.

Por fim, a responsabilidade pode ser directa, subsidiária ou solidária. Dispõem os artigos 62º e 63º:

Artigo 62º:
“Responsabilidade directa e subsidiária

”1. A responsabilidade efectiva nos termos dos artigos anteriores pode ser directa ou subsidiária.
2. A responsabilidade directa recai sobre o agente ou agentes da acção.
3. É subsidiária a responsabilidade financeira reintegratória dos membros do Governo, gerentes, dirigentes ou membros dos órgãos de gestão administrativa e financeira ou equiparados e exactores dos serviços, organismos e outras entidades sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas, se forem estranhos ao facto, quando:
a) Por permissão ou ordem sua, o agente tiver praticado o facto sem se verificar a falta ou impedimento daquele a que pertencem as correspondentes funções;
b) Por indicação ou nomeação sua, pessoa já desprovida de idoneidade moral, e como tal reconhecida, haja sido designada para o cargo em cujo exercício praticou o facto;
c) No desempenho das funções de fiscalização que lhe estiverem cometidas, houverem procedido com culpa grave, nomeadamente quando não tenham acatado as recomendações do Tribunal em ordem à existência de controlo interno.”
Artigo 63º:
“Responsabilidade solidária”
“Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, se forem vários os responsáveis financeiros pelas acções nos termos dos artigos anteriores, a sua responsabilidade, tanto directa como subsidiária, é solidária, e o pagamento da totalidade da quantia a repor por qualquer deles extingue o procedimento instaurado ou obsta à sua instauração, sem prejuízo do direito de regresso.”

A lei determina o conteúdo da obrigação de reposição: o responsável deve repor as importâncias abrangidas pela infracção financeira, que são os montantes de dinheiros públicos em alcance e os montantes de pagamentos indevidos - artigo 59º, nº 1, considerando-se indevidos, para este efeito, os pagamentos ilegais que causem dano ao Estado ou entidade pública por não terem contraprestação efectiva - artigo 59º, nº 2.

Segundo dispõe o nº 3 deste artigo 59º, a reposição inclui os juros de mora sobre os respectivos montantes, aos quais se aplica o regime das dívidas fiscais, contados desde a data da infracção, ou, não sendo possível determiná-la, desde o último dia da respectiva gerência.

A reposição não tem lugar quando o respectivo montante seja compensado com o enriquecimento sem causa de que o Estado haja beneficiado pela prática do acto ilegal ou pelos seus efeitos - artigo 59º, nº 4.

A responsabilidade financeira e a consequente obrigação de reposição pode resultar, também, como se referiu, da prática de actos que impliquem a não arrecadação de receitas: "nos casos de prática, autorização ou sancionamento doloso que impliquem a não liquidação, cobrança ou entrega de receitas com violação das normas legais aplicáveis, pode o tribunal de Contas condenar o responsável na reposição das importâncias não arrecadadas em prejuízo do Estado ou de entidades públicas" – artigo 60º:

A responsabilidade financeira reintegratória extingue-se pelo pagamento e pela prescrição; o prazo de prescrição é de dez anos - artigos 69º e 70º.


7. Não obstante a confluência e a proximidade à matriz da responsabilidade civil, os pressupostos de uma e outra forma de responsabilidade e o respectivo regime são diversos, traduzindo tal diversidade a autonomia conceptual e a inconfundibilidade dos institutos.

No âmbito das relações internas, a responsabilidade gerada pelo não cumprimento ou defeituoso cumprimento dos deveres de uma função, tem matriz contratual, e é dessa necessária referência que decorre o respectivo regime.

O efeito fundamental do não cumprimento (falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso) imputável ao devedor consiste na obrigação de indemnizar os prejuízos causados - previsão geral deduzida do artigo 798º do Código Civil.

Os danos reparáveis, que constituem o objecto da obrigação de indemnizar, são determinados em função dos prejuízos concretamente sofridos pelo lesado – artigo 564º do Código Civil.

A obrigação de indemnizar depende do facto objectivo da violação dos deveres do cargo (que são deveres contratuais), que seja um facto ilícito, e que haja nexo de causalidade entre o facto e o dano.

No domínio da responsabilidade contratual, a ilicitude resulta da relação de desconformidade entre a conduta devida (a prestação debitória) e o comportamento observado[33].

Esta breve síntese, permitindo fazer notar os pontos de convergência, permite, outrossim, salientar os momentos que traduzem a autonomia, enquanto noção e categoria, da responsabilidade financeira.

Comece-se pelos pressupostos materiais. Na responsabilidade financeira, como se referiu, estes estão legalmente definidos em termos de marcada tipicidade. É certo que no interior da relação em que a responsabilidade pode nascer e se situa, os factos (acções ou omissões; comportamentos funcionais), enquanto constituam ou sejam qualificados como infracção financeira, podem constituir igualmente faltas funcionais. Com maior ou menor peso no plano das valorações, seriam susceptíveis de gerar responsabilidade pelos danos que causassem.

Porém, neste plano, a valoração, quer pelos pressupostos, quer pelas consequências legalmente assinaladas, apresenta-se apenas como financeira; como tal, e enquanto as consequências não forem ou puderem ser diversas das que são previstas na efectivação da responsabilidade financeira, não assumem relevo ou autonomia noutro tipo de responsabilidade de natureza reparatória.

Esta conclusão é confortada pela natureza dos efeitos. A obrigação de repor, própria da responsabilidade financeira, podendo eventualmente coincidir com uma certa forma de avaliação de danos, não é, no entanto, aferida pela medida destes, encontrada no âmbito de delimitação do conteúdo da obrigação de indemnizar. O objecto da reparação resulta directa e expressamente da lei, independentemente de qualquer necessidade de avaliação sobre a produção e a medida dos danos; a eventual identidade ou aproximada coincidência, dir-se-ia quase natural, entre a medida legal da reposição e uma certa perspectiva de consideração dos danos, não afecta ou anula, nem se sobrepõe à diferente valoração e qualificação ex vi legis.

Por isso, a obrigação de repor e a natureza da reposição estão afastadas de qualquer avaliação de causalidade que se exige na responsabilidade civil entre os factos e os danos. O regime da responsabilidade financeira não supõe esta relação, mantendo-se a reposição objectivamete ligada aos montantes que a lei expressamente manda constituir como objecto da obrigação de repor.

Por último, e determinante, a possibilidade de relevação jurisdicional, que é exclusiva da responsabilidade financeira, sendo inteiramente alheia ao regime da responsabilidade civil[34].

A responsabilidade financeira é, assim, diversa da responsabilidade civil, pois é independente do prejuízo efectivo da Administração; pode constituir uma pura responsabilidade objectiva, embora o grau de culpa possa ter consequências, e deriva da própria lei, independentemente de qualquer verificação de danos. Tem um carácter marcadamente substitutivo da responsabilidade civil, ao qual se congrega também uma feição preventiva e punitiva que marca a fisionomia própria da responsabilidade financeira[35].

A responsabilidade financeira reintegratória constitui, pois, uma responsabilidade à parte, própria dos «contáveis» [36]; traduz a medida da responsabilidade, de matriz ou analogia contratual, destes agentes por factos financeiros típicos e correspondentes faltas funcionais no domínio das relações internas.

A inconfundibilidade das noções que está pressuposta à cumulação das diversas formas de responsabilidade que num dado caso couberem, nos termos expressos na lei ("sem prejuízo de qualquer outro tipo de responsabilidade em que [o responsável] possa incorrer" - artigo 59º, nº 1), tem de ser, pois, interpretada nestes precisos termos. A essencialidade das valorações há-de constituir o elemento relevante, e no domínio da responsabilidade interna dos agentes sujeitos ao julgamento de contas - os «contáveis» - a responsabilidade por factos qualificados como faltas financeiras é financeira, e na medida em que seja reintegratória, será, por essa sua natureza, substitutiva da responsabilidade civil.

A identidade de factos que constituam, por um lado pressupostos legais da responsabilidade financeira e, por outro, pudessem ser considerados e qualificados como factos lesivos geradores de responsabilidade (que teria de ser de matriz contratual) no plano interno, não poderá produzir uma dupla consequência reparatória, quando a própria lei estabelece directamente a medida da reintegração financeira no quadro da disciplina e do regime da responsabilidade financeira reintegratória [37].

Diversas serão as coisas se tais factos produzirem também consequências no plano externo, quanto a terceiros, fora da relação específica dos «contáveis». Em tais casos - que, todavia, estão fora da hipótese problemática que vem enunciada - as regras e os princípios serão os gerais da responsabilidade civil aplicáveis, não se suscitando questões a resolver no âmbito da responsabilidade financeira.

No que respeita à cumulação de responsabilidades, não se suscitam quaisquer dúvidas quanto à autonomia de responsabilidades no caso de uma eventual qualificação penal ou disciplinar dos factos que constituam fonte de responsabilidade financeira, e respectivas consequências, sempre que tais factos, por si mesmos e nas circunstâncias em que ocorram, possam integrar alguma infracção penal ou disciplinar[38] [39].

VI

1. A exposição dos magistrados do Ministério Público no Tribunal de Contas, no que respeita aos procedimentos de actuação, aponta sobretudo a possível interconexão com o processso penal, quando os factos que integrem os pressupostos da responsabilidade financeira sejam também passíveis de qualificação penal e constituam objecto de um processo penal[40].

As considerações desenvolvidas sobre a natureza, pressupostos e efeitos da responsabilidade financeira permitem já a conclusão de que a existência de um processo penal para apuramento da responsabilidade criminal dos agentes de factos, penalmente típicos, que cumulativamente possam ser considerados e qualificados no âmbito dos pressupostos da responsabilidade financeira, constitui uma contingência processual estranha ao domínio e ao apuramento e efectivação desta forma de responsabilidade.

Com efeito, sendo indiscutida a autonomia da qualificação penal e suas consequências (a autonomia e cumulabilidade da responsabilidade penal), a apurar em processo penal, a questão apenas se suscita na medida da determinação da reparação civil em processo penal.

Mas, assim sendo, o problema não apresenta elementos de novidade por referência à matéria e à ponderação efectuada em redor da autonomia das noções 'responsabilidade financeira' e 'responsabilidade civil', sendo o princípio da adesão estranho à discussão da questão suscitada.

Este princípio, consagrado no artigo 71º do Código de Processo Penal, impõe, como regra, que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deva ser deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei[41].
A indemnização de perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil - artigo 129º do Código Penal, assumindo, assim, a natureza de responsabilidade civil, nos termos e segundo os pressupostos da lei civil que regula a responsabilidade civil por factos ilícitos. O mesmo princípio vale para os chamados 'crimes de responsabilidade' - artigo 45º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho[42].

Valem, por isso, as considerações feitas a propósito da relação responsabilidade financeira-responsabilidade civil. A efectivação da responsabilidade financeira, autónoma em relação à responsabilidade civil, não está dependente do processo penal quando os factos também constituam crime, é estranha ao princípio da adesão e deve ser promovida no lugar da competência própria do Tribunal de Contas através do processo adequado directamente previsto na lei.


2. Sendo, pois, assim, uma outra conclusão se pode igualmente formular: o âmbito e os termos do princípio da suficiência do processo penal está fora da análise, ponderação e solução da questão suscitada.

O princípio, legislativamente conformado no artigo 7º, nº 1, do Código do Processo Penal, afirma-se, por um lado, na independência do processo penal ("o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro"), e na suficiência em sentido estrito ("nele se resolvem todas as questões que interessem à decisão da causa").

A compreensão da dimensão material e processual da suficiência apreende-se bem pela estrutura da limitação sobre as questões prejudiciais - artigo 7º, nº 2: "quando, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal, pode o tribunal suspender o processo para que se decida esta questão no tribunal competente".

O princípio pretende garantir a concentração e a continuidade do processo penal, prevenindo a ocorrência de obstáculos infundados ao exercício da acção penal[43].

O princípio da suficiência do processo está, assim, preordenado à resolução de todas as questões que interessem à decisão que é objecto do processo penal, mesmo que algumas dessas questões relevem de matérias em princípio da competência de outros tribunais. Mas a suficiência do processo não se refere às consequências, pela ampliação do objecto (todas as matérias), mas pressupõe a definição prévia do objecto do processo (todas as questões que interessem à decisão).

Como, porém, se referiu, não sendo a responsabilidade financeira determinada nos termos da lei civil, e sendo específica dos contáveis e especial em relação à responsabilidade civil, a sua efectivação não pode aderir ao processo penal, não podendo integrar, pois, o objecto da acção aderente delimitado pelos termos da responsabilidade civil emergente de um crime.

VII

1. A exposição precedente permite, neste momento, formular uma nota de síntese sobre as questões suscitadas na exposição dos magistrados do Ministério Público no Tribunal de Contas.

A autonomia e a natureza própria da responsabilidade financeira - reintegratória, com a dupla função preventiva e de reparação e reintegração patrimonial e financeira (e, nesta medida, assumindo uma função substitutiva da responsabilidade civil nas relações internas), ou sancionatória - impõe, como necessária consequência, que a respectiva efectivação seja promovida no lugar de competência próprio, através do processo directamente regulado na lei.

A efectivação desta forma de responsabilidade é, por isso, independente do apuramento e determinação no âmbito das valorações próprias de outras formas de responsabilidade que possam ser, ou sejam cumuláveis - penal, contra-ordenacional, disciplinar e, eventualmente, civil nas relações externas.

A natureza da responsabilidade financeira é, como se salientou, específica ou especial; desta natureza hão-de derivar as necessárias consequências: enquanto for, e nos termos em que seja reparatória e reintegradora, a responsbilidade financeira substitui (sobrepõe-se) a responsabilidade civil nas relações internas, com todas as respectivas consequências, nomeadamente no plano da relevação ou da substituição por responsabilidade sancionatória.


2. Deste modo, logo que na sequência dos procedimentos de controlo externo (relatórios de verificação externa de contas ou de auditoria - artigos 54º e 55º da Lei nº 98/97, de 26 de Agosto), se apurem factos susceptíveis de constituir os «contáveis» em responsabilidade financeira (alcance, desvio de dinheiros ou valores público, pagamentos indevidos ou não arrecadação de receitas - artigos 59º e 60º da referida Lei), o Ministério Público deve promover o processo junto da 3ª Secção do Tribunal de Contas, no uso da competência que a lei lhe confere [44].

A competência do Ministério Público para requerer no Tribunal de Contas a efectivação da responsabilidade financeira, ditada pela natureza desta forma de responsabilidade, definida em função de pressupostos autónomos, objectiva e tipicamente estabelecidos na lei, é independente de outras formas de responsabilidade que possam ser cumuláveis, a apurar e efectivar nas jurisdições competentes.

VIII

Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1ª. A responsabilidade financeira, qualificada na Lei nº 98/97, de 26 de Agosto (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas) como reintegratória e sancionatória, constitui a forma de responsabilidade específica dos «contáveis», isto é, dos agentes sujeitos à jurisdição do Tribunal de Contas directamente definidos na lei;

2ª. A responsabilidade financeira tem como fonte a prática de factos financeiros directamente previstos na lei (alcance, desvio de dinheiros ou valores públicos, pagamentos indevidos ou não arrecadação de receitas);

3ª. A responsabilidade financeira tem pressupostos, finalidades e consequências diversas de outras formas de responsabilidade, e deve ser apurada e efectivada independentemente de outras formas de responsabilidade que possam derivar dos mesmos factos;

4ª. A responsabilidade financeira reintegratória constitui os responsáveis na obrigação de repor os montantes determinados na lei, apurados objectivamente em função dos factos que constituem os pressupostos da responsabilidade;

5ª. A competência material para a efectivação da responsabilidade financeira pertence ao Tribunal de Contas, devendo ser requerida pelo Ministério Público, no exercício de competência directamente prevista na lei, independentemente de eventuais responsabilidades de outra natureza, emergentes dos mesmos factos, que devam ser apuradas nas jurisdições competentes: responsabilidade civil nas relações externas; responsabilidade penal; responsabilidade disciplinar.








[1] Estudo preparado pelo Procurador-Geral Adjunto António Cluny, publicado na ‘Revista do Tribunal de Contas’, nº 32 (Out-Dez. 1999), pág. 85.
[2] Cfr. ANTÓNIO DE SOUSA FRANCO, “Dinheiros Públicos, Julgamento de Contas e Controlo Financeiro no Espaço de Língua Portuguesa”, ed. do Tribunal de Contas, 1995, pág. 1 e segs., que, em síntese e por vezes textualmente, se acompanha.
[3] “Stock” ou “existência de bens”, mais ou menos duradouro e inventariável e avaliável em qualquer momento que se queira. Cfr. Idem, ibidem.
[4] Cfr. Idem, pág. 2.
[5] Cfr. Idem, pág. 3. Outros princípios são a garantia do património dos particulares perante o exercício dos poderes do Estado e o princípio da representação político-financeira do povo pelos responsáveis públicos (políticos, legislador, administradores ou julgadores) como única fonte dos respectivos poderes financeiros.
[6] Controlo, como função de qualquer organização, “a qual consiste em garantir que os actos praticados no âmbito dela e da sua actividade sejam ajustados aos objectivos que visam atingir e às regras e critérios a que devem obedecer”. Cfr, idem, pág. 4.
[7] Numa grande classificação, podem considerar-se também, o autocontrolo e o controlo interno. Cfr., SOUSA FRANCO. Op. cit., pág. 6.
[8] Cfr. Idem, pág. 7 e 8. Outros critérios e objectivos do controlo financeiro são a representação política e a economicidade ou correcção económico financeira.
[9] Cfr., idem, pág. 21 e segs. sobre a perspectiva e evolução histórica.
[10] Cfr. Idem, págs. 27/28.
[11] Op. cit., págs. 28/29.
[12]) Alterada pelo artigo 82º, da Lei nº 87-B/98, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 1999), e pela Lei nº 1/2001, de 4 de Janeiro.
[13] Prevista no artigo 49º da Lei nº 98/97.
[14] As entidades enumeradas no artigo 2º da Lei nº 98/97.
[15]) Na redacção introduzida pelo artigo 82º da Lei nº 87-B/98, de 31 de Dezembro.
[16] As associações públicas, associações de entidades públicas ou associações de entidades públicas e privadas que sejam financiadas maioritariamente por entidades públicas ou sujeitas ao seu controlo de gestão; as empresas públicas; as sociedades constituídas nos termos da lei comercial pelo Estado, por outras entidades públicas ou por ambos em associação; as sociedades constituídas em conformidade com a lei comercial em que se associem capitais públicos e privados, nacionais ou estrangeiros, desde que a parte pública detenha de forma directa a maioria do capital social; as sociedades constituídas em conformidade com a lei comercial em que se associem capitais públicos e privados, nacionais ou estrangeiros, quando a parte pública controle de forma directa a respectiva gestão; as empresas concessionárias da gestão de empresas públicas, de sociedades de capitais públicos ou de sociedades de economia mista controladas e as empresas concessionárias ou gestoras de serviços públicos; as fundações de direito privado que recebam anualmente, com carácter de regularidade, fundos provenientes do Orçamento do Estado ou das autarquias locais, relativamente à utilização desses fundos.
[17] Como já se referiu, o artigo 2º, nº 1, enumera as entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas: o Estado e seus serviços; as Regiões Autónomas e seus serviços; as autarquias locais, suas associações ou federações e seus serviços, e as áreas metropolitanas; os institutos públicos e as instituições de segurança social.
[18] Cfr., v. g., JOÃO FRANCO DO CARMO, “Contribuição para o Estudo da Responsabilidade Financeira”, in, Revista do Tribunal de Contas, nº 23, Janeiro-Setembro de 1995, pág. 52.
[19] Da responsabilidade jurídica importa distinguir a chamada responsabilidade política, que mesmo quando conformada pelo direito apenas poderá determinar sanções de natureza política; a responsabilidade política, que se fundamenta em regras e critérios de compatibilidade política, pressupõe a avaliação de uma actuação na sua globalidade, sem referência a actos específicos. Cfr. Idem, pág. 53.
[20] Para a Administração Local, artigo 97º da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro.
[21] Cfr, JOÃO FRANCO DO CARMO, op. cit., pág. 67 e segs; LOUIS TROTABAS e JEAN-MARIE COTTERET, "Droit budgétaire et comptabilité publique", 4ª ed., 1991, pág. 163, consideram a responsabilidade própria dos "comptables" uma forma especial de responsabilidade civil, própria destes agentes e, enquanto tal, diversa do regime geral dos funcionários e agentes da Administração.
[22] Cfr. JOÃO FRANCO DO CARMO, op. cit., pág. 65.
[23] Cfr. idem, págs 73 e segs., que se segue de perto.
[24] Cfr. “Control de la economia financiera publica”, in Pressupuesto y Gasto Publico, nº 2, 1979, pág. 179, cit em JOÃO FRANCO DO CARMO, op. cit., pág. 73.
[25] Cfr. ANTÓNIO SOUSA FRANCO, “Finanças Públicas e Direito Financeiro", 4ª edição, Vol. I, 1998, pág. 481 e segs.; JOÃO FRANCO DO CARMO, op. cit., pág. 73-74.
[26] Cfr, JOÃO FRANCO DO CARMO, op. cit., pág. 74.
[27] Por isso que, para alguns autores, o núcleo histórico e conceitual da responsabilidade financeira («responsabilità contabile») se identifique com esse julgamento, definindo-a como uma responsabilidade eminentemente processual. Cfr. Idem, pág.75. Cfr., porém, infra, nota (34).
[28] Analisa-se, porque a questão vem colocada apenas nesse domínio, a chamada "responsabilidade financeira reintegratória." Mas a lei prevê, também, outra forma de responsabilidade financeira - a sancionatória. A responsabilidade financeira sancionatória pode determinar a aplicação de multa pelo Tribunal de Contas, nos casos tipicamente enumerados na lei - artigos 65º e 66º da Lei nº 97/89, de 26 de Agosto. Trata-se de factos que a lei expressamente qualifica como infracções financeiras, sendo relevante na determinação da multa a forma e o grau de culpa. Por seu lado, a obrigação de reposição, típica da responsabilidade financeira reintegratória, pode, quando não haja dolo dos responsáveis, ser convertida em pagamento de multa de montante pecuniário inferior, dentro dos limites da multa previstos para os casos de responsabilidade sancionatória – artigo 65º, nº 6, decisão a executar, se necessário, em processo de execução fiscal – artigo 95º, nº 2.
[29] Cfr. SOUSA FRANCO, op. cit.; JOÃO FRANCO DO CARMO, op. cit., págs. 69-70; LÍDIO DE MAGALHÃES, "Notas sobre a responsabilidade financeira", Revista do Tribunal de Contas, nº 5/6, Jan-Junho 1990, pág. 15 e segs. (separata).
[30]) Sobre a relação entre responsabilidade penal e responsabilidade disciplinar, vide, v.g. o Parecer deste Conselho nº 24/95, de 7 de Dezembro.
[31] Cfr. op cit., pág. 71-72.
[32] Definir o “alcance” é mais complexo. "O alcance ocorre quando houver demora na entrega de fundos a cargo do exactor, subtracção de valores, omissão de receitas, ou qualquer falta no cofre, erro de cálculo ou outras causas que não possam atribuir-se a infidelidade do gerente, arrebatamento, perda, destruição de valores e dinheiros públicos e outros casos de força maior; quando o tesoureiro da Fazenda Pública não tenha em cofre, ou com saída documentada, quantia que nele devia estar em função da escrita, ou quando não apresente ou não tenha documentos de cobrança ou outros valores à sua guarda, cuja falta não permita analisar o balanço e a escrita da sua responsabilidade", Cfr. ANTÓNIO SOUSA FRANCO, "Finanças Públicas e Direito Financeiro", cit., pág. 485.
[33] Cfr. ANUNES VARELA, “Das Obrigações Em Geral”, vol. II. 7ª edição, pág. 91 e segs.
[34] Não será relevante o elemento ou argumento processual: a autonomia conceptual da responsabilidade financeira não resulta da circunstância de o julgamento ser da competência dos tribunais de contas; ao contrário, por a responsabilidade ser financeira, como categoria autónoma (isto é, por se verificarem os pressupostos de que depende e que a lei directamente estabelece), é que se integra na competência daqueles tribunais.
[35] Cfr. ANTÓNIO SOUSA FRANCO, "Finanças Públicas e Direito Financeiro", cit., pág, 483.
[36] Cfr. ERNESTO DA TRINDADE FERREIRA, "O Tribunal de Contas", 1962, pág. 149, definindo a responsabilidade financeira como "uma forma especial de responsabilidade em que incorrem os responsáveis das contas", "traduzindo-se na obrigação de reintegrar o património lesado e de suportar sanções de carácter penal e disciplinar".
[37] No regime anterior (artigo 49º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro), o artigo 49º, ao tratar o problema de responsabilidade financeira ("Reposições"), previa a condenação dos responsáveis pela infracção "sem prejuízo de efectivação da responsabilidade criminal e disciplinar a que eventualmente houver lugar."Havendo identidade na definição dos actos que constituem os responsáveis na obrigação de repor, a formulação actual (em que se não especificam as outras formas de responsabilidade eventualmente cumuláveis) será mais clarificadora do que substancialmente modificativa de sistema. Terá tido a vantagem de admitir a cumulação com a responsabilidade civil que puder ser cumulada dentro da unidade do sistema – a responsabilidade externa eventualmente decorrente dos mesmos factos. Seria, com efeito, gravemente perturbadora da unidade do sistema a compatibilidade entre a possibilidade de relevação pelo Tribunal de Contas da responsabilidade financeira, e a fixação de uma reparação nos termos da obrigação decorrente da responsabilidade civil no âmbito das relações internas. - Cfr., v.g.JOSÉ TAVARES e LíDIO DE MAGALHÃES, "Tribunal de Contas, Legislação Anotada", 1990, pág. 137.
[38] Pense-se, por exemplo, no artigo 376º, nº 2, do Código Penal, ou no artigo 14º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho.
[39] No direito espanhol, aceita-se a compatibilidade da responsabilidade financeira e da responsabilidade penal, e a intervenção simultânea de ambas as jurisdições – de contas e penal relativamente aos mesmos factos. Cfr., v.g. CARLOS CUBILLO RODRIGUEZ, "La Juridicción del Tribunal de Cuentas", 1999, págs. 215 e segs., citando entre outras, a decisão de "Tribunal de Cuentas" de 22 de Outubro de 1994: "es a la jurisdicción contable a la que con carácter exclusivo – es decir, com absoluta preferencia respecto a los demás órdenes jurisdiccionales – le compete conocer de la responsabilidad civil surgida de tales delitos, que no es outra que la contable. ... para la jurisdicción contable entender de la responsabilidad civil derivada de esos delitos es fruto de su competencia básica originaria, mientras que para la penal esse entendimiento es acessorio y distinto de aquél que sustancialmente le corresponde depurar y exigir, esto es, la responsabilidad criminal". Cfr., também, LUÍS VACAS GARCIA-ALÓS, in, "Boletin Oficial, Ministerio de Justicia", Ano XLVI. 15 Janeiro 1992, págs. 270 e segs.
[40] Recorde-se que se informa que a prática seguida tem sido a de aguardar a decisão do processo penal e a efectivação de responsabilidade civil que aí possa ter, ou tenha tido, lugar.
[41] Enumerados no artigo 72º do Código de Processo Penal. O sistema de interdependência ou da adesão das pretensões a deduzir contra os agentes de um crime (em acções que, estando em estreita conexão, se não confundem) é, hoje, acolhido pela maioria das legislações. Cfr., sobre o princípio, FIGUEIREDO DIAS, Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal, «Estudos in memoriam do Prof. Beleza dos Santos», 1966, pág. 88.
[42] A reparação civil emergente da prática de um crime não tem hoje, por directa indicação da lei, natureza sancionatória. Cfr. FIGUEIREDO DIAS, «Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime», 1993, pág. 78 e 82.
[43] Cfr. sobre o fundamento e alcance do princípio, FIGUEIREDO DIAS, «Direito Processual Penal», I, págs. 164 e 169.
[44] O Ministério Público, com efeito, não tem poderes autónomos de inquérito, devendo actuar na base dos elementos constantes dos relatórios de verificação externa de contas.